Gostaria de falar um pouco sobre a criança pequena e o fluxo
do amor interrompido. Isso mesmo: o amor que sofre uma interrupção, criando, na
criança, um sentimento de insegurança em relação à vida, um sentimento profundo
de conexão com a morte mesmo.
Fiz alguns atendimentos a pessoas que desenvolveram doenças
autoimunes por conta do fluxo do amor interrompido e a outras pessoas, com
doenças emocionais graves, como depressões e transtornos de ansiedade. O foco é a primeira etapa do desenvolvimento
infantil, especialmente os momentos iniciais, do nascimento ao terceiro ano de
vida.
A criança, inicialmente, vive uma relação de completa
dependência e simbiose com a mãe. Ela e a mãe são uma coisa só. Vive durante
nove meses dentro do útero, sem a menor condição de fazer qualquer coisa por si
só. Após o nascimento, como um bom filhote de humano, vive na dependência
absoluta até o terceiro ano, quase quarto.
Do nascimento até um ano e meio, a criança cresce e se
desenvolve rapidamente e continua vivendo na mais completa dependência, ainda
que fora da barriga da mãe. Se não tiver alguém que “trate” dela, que cuide,
provavelmente morrerá: de fome, de sede, suja e infectada por suas próprias
urina e fezes. Nos primeiros meses de vida, existe uma indiscriminação em
relação à mãe. É como se a mãe fosse extensão da criança. A simbiose do útero
se estende, muitas vezes também para a própria mãe, que sabe conscientemente que
não é a criança ou extensão dela. E isso é bom. Isso é vida, é conexão, é
saúde.
Após um ano, a criança já começa a caminhar, comer com ajuda.
Fala algumas palavras. Já está mais independente, pois saiu do colo, foi para o
chão. Desgrudou. Vai e vem sozinha.
Por conta do desenvolvimento da linguagem, especialmente a
partir do segundo ano de vida, a criança parece já estar mais crescida. Aos
três anos de idade, já forma até frases completas. Compreende melhor o mundo e
até aprende que há regras que precisam ser obedecidas, contratos, “combinados”
que precisam ser cumpridos. Apesar da maior autonomia, continuam dependentes.
São egocêntricas, por isso não percebem realmente o outro. Para elas a única
coisa que existe são suas necessidades. E é mesmo. Piaget chamou esse momento
do desenvolvimento humano de Estádio Sensório-Motor. São sensações que vão se
vinculando a comportamentos motores.
A partir dos dois anos e meio, mais ou menos, a criança entra
em outro momento do desenvolvimento, mais inteligente, mais sensível, é quando
aparece a capacidade de representação, que Piaget chamou de função simbólica ou
semiótica. Pulam, saltam, gritam os significados. E o entendimento do mundo
passa a ser outro. O pensamento não é apenas sensório motor, ele tem um caráter
lúdico, o pensamento é simbólico: é a inteligência simbólica.
Ainda suas necessidades estão acima de qualquer coisa, a
dependência do outro é extrema, ainda que a “independência” e autonomia sejam
gritantes. O pensamento é mágico, animista, pré-lógico, artificialista. Não é
possível discriminar o real do irreal.
A criança de três anos está no início do período simbólico,
ainda é profundamente dependente da mãe ou de quem cuida dela. Ela é física e
emocionalmente dependente.
Ressalto a dependência por conta do sentimento de morte,
provocado pela ruptura, quando há a separação (curta ou longa) da criança da
mãe. E, posteriormente aos primeiros momentos da vida, também do pai.
Nas Constelações Familiares vemos claramente o amor que cura
e o amor que adoece.
Hellinger afirma que “o amor no seio da família tanto pode
provocar doença como restabelecer a saúde”. Diz também que “não é a família que
provoca as doenças, mas a profundidade dos vínculos e a necessidade de
compensação. Quando se traz isso à luz, esse mesmo amor e essa mesma
necessidade de compensação podem, num nível superior, ter uma influencia
benéfica sobre a doença.”
O que produz as doenças, poderíamos perguntar?
As lealdades invisíveis produzem as doenças e, somos leais
por Amor. O amor cego e infantil.
Maturana e Varela, em seu livro “A árvore do conhecimento”
dizem que o que chamamos nas constelações de amor pode ser chamado de deriva,
de uma demanda biológica, sem o controle do ser humano. É o ontogenético a
serviço do filogenético. É interessante pensar nisso. Pensar que a gazela que
fica por último no bando que será atacado por um grupo de hienas, ou lobos,
fica por lealdade ao grupo. Porque é necessário que os predadores foquem em um
elemento, e não no bando. E um elemento se sacrifica pelo grupo.
Hellinger diz que “Temos que reconhecer este amor
profundo”. “O amor que reconhece a
família e a profundidade da vinculação, com respeito, restabelece a saúde e
traz as bênçãos”.
Muitas das doenças que estão presentes hoje na vida do ser
humano, são, portanto, doenças sistêmicas. Doenças que vêm compensar, de algum
modo, algo de grave que ocorreu na família. Um filho que “tomou” o lugar do pai
ou da mãe, dizendo (inconscientemente) “eu morro para que você viva”, ou “eu
pago o seu preço com a minha doença”.
São dinâmicas presentes nos sistemas familiares, invisíveis,
que muitas vezes são repetidas por muitas gerações.
Além deste amor inconsciente pelo sistema familiar, que
sequer depende do conhecimento e da convivência com nossa família, temos também
todos os envolvimentos relacionados à doença e à saúde, que podem ganhar status
estruturais em termos de desenvolvimento ontogenético. Ou seja, doenças que
podem ter sua origem no sistema familiar (lealdades), mas também ser geradas a
partir de contextos ambientais e relacionais.
O “Fluxo do Amor Interrompido” é um aspecto que tem a ver com
o relacional.
Como diz Franke-Bryson, esse amor que adoece “tem origem na
interrupção do fluxo de amor entre pais e filhos e pode levar a uma redução na
capacidade de estar presente e sentir emoções primárias.”
Pessoas que vivem essa dinâmica, em geral, são pessoas ativas
e funcionais, mas com uma dificuldade em reconhecer que têm o suficiente. Algo
sempre está faltando, não podem chegar à plenitude, não podem se entregar, nas
suas relações; vivenciam dificuldades na conexão com o outro. Muitas vezes
sentem-se inseguras, desconfiadas.
Há um grande sofrimento, mas por serem pessoas tão “normais”,
até com sucesso em algumas áreas da vida, fica difícil identificar o motivo, a
causa daquele sofrimento. Se é que podem chamar o que sentem de sofrimento. E,
muitas vezes, têm uma boa relação com o par parental (tanto com o pai, quanto
com a mãe).
Atendi, no ano que passou, 2015, alguns casos que tinham a
ver com o fluxo do amor interrompido ou movimento interrompido. Eram
sofrimentos enormes, de pessoas que diziam “ter tudo”, mas não conseguiam se
sentir inteiras, felizes. Pessoas que buscaram, inconscientemente, parceiros que
podiam lhes dar bem pouco, ou que viviam sob a ameaça de “já já vou perder tudo
isso…” porque seu companheiro ou companheira, de fato, não estava disponível.
Buscavam o conhecido, a repetição.
Após investigação, observamos que na tenra infância, o cliente
tinha sofrido uma ruptura em momentos iniciais de sua infância: sua mãe ficara
internada durante um mês, no caso de um deles, e ele ficou com a avó. Em outro
caso, a mãe viajou com o pai durante algumas semanas e deixou o bebê de meses
com os avós. Em outro caso, ainda, a mãe tinha que trabalhar em outra cidade e
deixou a filha com os pais dela (que cuidaram muito bem) durante um tempo. E
depois o pai de minha cliente ia sempre vê-la, e aos finais de semana
buscavam-na para passar com eles, pois sua mãe retornava sempre aos sábados e
ia embora às segundas feiras.
Lembro-me novamente Maturana e Varela, quando, no mesmo livro
citado, “A árvore do conhecimento”, abordam sobre Domínios Comportamentais.
Existe uma plasticidade estrutural no ser humano, inclusive quando se trata de
sistema nervoso. E os tipos de interações, a história de cada um, vai
determinar também transformações nessa estrutura inicial.
Um exemplo citado por eles nesse livro: na separação por
poucas horas, de um filhote de cordeiro de sua mamãe, em seus momentos iniciais
de vida, que logo é devolvido a ela (mamãe), pode-se observar um
desenvolvimento normal do animal, exceto pelo fato de que o cordeirinho
separado da mãe não brincará com os outros animais como os de sua espécie. Ele
“não aprende a brincar; permanece afastado e solitário” (pág. 142).
Não pretendo me aprofundar nesse assunto, neste momento.
Porém, neste final de ano, em minha clínica e fora dela, ouvi de várias mães de
bebês entre alguns meses e três anos de vida, que viajariam de férias para o
exterior sem o filho, que ficaria muito bem com os avós (e eu não duvido disso,
sendo eu a avó que sou), como se fosse a coisa mais normal do mundo. Uma
cliente foi fazer um curso de inglês de um mês de duração! E deixou seu filhote
de 2 anos! E que falaria com ele todos os dias pelo Skype. Segundo ela, ele
ficou bem com o pai. Perguntei a alguns deles: “e a criança”? E eles me
responderam: “qual o problema”?
Então lhes falei sobre o Fluxo do Amor Interrompido. Que o
Amor vira ameaça, sentimento de ausência extrema, como se a criança vivenciasse
extremamente o sentimento de morte, a conexão com a Morte. Que o
desenvolvimento natural do ser humano é afetado quando um filhote é deixado por
sua mãe, especialmente, por um determinado período de tempo, seja lá por qual
motivo for, tanto faz uma doença ou um curso, a morte da mãe ou a viagem de
férias. Quanto mais novo, pior. Se é um tempo pequeno (uma semana, quatro dias)
para um bebê bem pequeno, isso lhe parecerá demais. Para uma criança de três
anos, uma semana lhe parecerá demais!
Isso tem a ver com a mãe, mas também com o pai. Sentimentos
de segurança básica têm também a ver com o pai. Portanto, a ausência do pai
também gera traumas na infância. Traumas de simbiose.
O filhote de 2 anos, de minha cliente, três dias depois da
viagem da mãe, não queria mais falar com ela pelo computador. E não falou,
durante todo mês que ela ficou fora.
A criança precisa dos pais. Especialmente da mãe. Sua
personalidade se estrutura na relação com eles, especialmente na presença
deles.
A ruptura gera traumas.
A ruptura gera traumas.
Um trauma que tem a ver com a sobrevivência. Com o estar no
mundo de relações. Com sentimentos de abandono e de morte. Com necessidades
básicas insatisfeitas. E, no início de nossas vidas isso é grande demais: a
criança se liga na morte, no disfuncional.
Os pais, especialmente a mãe, são a base, são aquilo que
estrutura.
Como fazer se a separação, curta para os adultos, mas longa
demais para um bebê, para um filhote, parece ruptura, parece morte?
As Constelações Familiares trazem a possibilidade da
reconexão com o fluxo da vida.
Outras intervenções, em consultório, focadas no fluxo do amor
interrompido podem também trazer a possibilidade da reconexão.
Para mães e pais, no entanto, o ideal seria que tivessem a consciência
de que filhos pequenos não podem ser deixados sozinhos. O tempo é relativo. O
“pouco tempo” para os pais pode ser “muito tempo” para o filhote. A presença da
mãe, especialmente, é fundamental para a criança, do nascimento até o terceiro
ano de vida.
Referências
Bibliográficas:
-Franke-Bryson, Ursula. O Movimento Interrompido. Em:
– Hellinger, Bert; T. Hovel, Gabriele. Constelações Familiares. São Paulo: Cultrix, 2001.– MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução Jonas Pereira dos Santos. São Paulo: Palas Athena, 1995.
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